Milplanaltos. Fecho.

Na qualidade de coordenadores de Milplanaltos, cumpre-nos dizer que damos por concluída aqui esta aventura que começou exactamente a 11 de Abril de 2011. A ideia, como estarão há muito cientes, sobretudo aqueles que nos têm acompanhado, foi a de mostrar, fundamentalmente, a inoperância da disciplinaridade e do enfeudamento (dir-se-ia uma das debilidades das especialidades e especializações académicas), e mostrar não apenas como uma parte considerável do trabalho de investigação no presente detém uma configuração interdisciplinar, mas também, e sobretudo, mostrar como pode ser fertilizador criar zonas de contacto entre olhares e produções já de si multiformes, híbridas, ou, na margem.

Na margem do discurso, na margem dos saberes territorializados, axiomáticos e instituídos, mas também na margem de poderes e encenações de poder que habitam hoje o centro da academia e que lhe roubam as suas linhas de fuga, as suas possibilidades de experimentação, em suma, de criação.

Gostaríamos de agradecer muito sentidamente a todos os que nos apoiaram ao longo deste período de tempo. Gostaríamos de agradecer ao Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (na pessoa da sua directora, Prof. Cristina Padez), à Casa da Escrita (nas pessoas do Prof. José Carlos Seabra Pereira e Dr. João Rasteiro), ao Museu da Ciência da UC (nas pessoas do Prof. Paulo Gama, seu director, e da nossa querida amiga, a Prof. Carlota Simões, vice-directora do MC, que foi inexcedível ao longo destes meses), a Marisa Leiria, a Isabel Pires e a Francisco Pires. Uma palavra de agradecimento vai também para o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (na pessoa de Carlos Antunes, seu director) e para o Núcleo de Estudantes de Antropologia do Departamento de Ciências da Vida da UC.

Gostaríamos de agradecer o extraordinário livro de Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille Plateaux, publicado em 1980, que constitui um tool kit maravilhoso para o conhecimento renovado do mundo, que coloca no seu centro uma ideia poderosíssima de liberdade e de movimento que encontrará sempre os seus luminosos cúmplices. Não podemos deixar de destacar também todos aqueles que, com o seu talento e criatividade nos brindaram com comunicações notáveis, que, muitas vezes, deram origem a textos que poderão ser encontrados neste nosso site e também sob a forma de dois cadernos que, noutro contexto, teriam constituído os primeiros elementos de uma belíssima colecção de ensaios.

Luís Quintais e Ana Pires Quintais

O arquivo incompleto

http://vimeo.com/70248779

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Partindo da noção de “archival impulse” de Hal Foster (2004) e da de “pós-memória” de Marianne Hirsch (1997), passando pelo “mal d’archive” de Jacques Derrida (1995) e por Austerlitz (2001) de W. G. Sebald, reflecte-se sobre a ideia de arquivo e pós-memória na arte e literatura contemporâneas através da análise de uma imagem da série Terezín (2010), do fotógrafo português Daniel Blaufuks.

Biografia:

Ana Pires Quintais é mestre em Psicologia e doutoranda em Linguagens e Heterodoxias pela Faculdade de Letras e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Actualmente encontra-se a escrever a sua dissertação de doutoramento na qual explora as relações entre literatura, imagem e pós-memória na obra artística de Daniel Blaufuks.
Últimas publicações:
(no prelo). “Tracing an Absent Memory: Jonathan Safran Foer’s Everything Is Illuminated and Susan Silas’s Helmbrechts Walk 1998-2003″. In Discourses That Matter. Cambridge Publishing Scholars.
(2013). “Postmemory and Art in the Urban Space”. In Nancy Duxbury (Org.) Rethinking Urban Inclusion. Spaces, Mobilizations, Interventions. Cescontexto – Debates, no. 2. Coimbra: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, pp. 505-511.

Super-heróis, cidadania e nação: o mito americano, poder e modernidade

http://vimeo.com/69412392

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Cláudia Pinto está a terminar a dissertação de doutoramento em Estudos Americanos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde trata, entre outras coisas, do papel da literatura do fantástico na construção da nação americana. Nos últimos 6 anos tem escrito e apresentado trabalho académico e científico sobre temas e obras do fantástico e de ficção científica na área dos Estudos Literários anglófonos. Da sua participação em congressos dedicados ao Fantástico e à Banda Desenhada destacam-se a 1a Conferencia Portuguesa de Banda Desenhada (2011) e a First International Conference on Comic Books and Graphic Novels (Univ. fr Alcalá de Henares, 2011). Mais recentemente, tem no prelo o artigo “Superhero identity in a Postnational context”, na antologia Discourses that Matter (Cambridge Publishing Scholars)
Descreve-se como uma “geek”, perseguidora do “uncanny” freudiano e uma acérrima defensora da imaginação como forma de pensar o mundo.

TRAIÇÃO NUMA LINHA DE FUGA

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A intenção de Benjamin era renunciar a toda a interpretação manifesta, fazendo com que as significações se impusessem apenas através da contrastada montage do material. (…) Para coroar o anti-subjectivismo, toda a obra tinha de constar de citações.
(Theodor W. Adorno, «Caracterização de Walter Benjamin», 1955: 23)

Por muito benjaminiana que esta concepção possa parecer, o editor está persuadido de que Benjamin não tinha intenção de proceder assim. Nenhuma carta corrobora esta afirmação e as duas notas das próprias Passagens (…) em que Adorno se apoia dificilmente podem ser interpretadas neste sentido.
(Rolf Tiedemann, «Introdução» a Walter Benjamin, Paris, Capital do Século XX. O Livro das Passagens, 1989: 12n)

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Há sempre traição numa linha de fuga. Não fazer batota como um homem do sistema que programa o seu futuro, mas trair como um homem simples que já não tem passado nem futuro. Traem-se os poderes fixos que nos querem reprimir, os poderes estabelecidos da terra. O movimento da traição foi definido pelo duplo desvio: o homem desvia a sua cara de Deus, que igualmente desvia a sua cara do homem. É neste duplo desvio, no afastamento das caras, que se traça a linha de fuga, quer dizer, a desterritorialização do homem.
(Gilles Deleuze e Claire Parnet, Diálogos, 1977: 52)

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Todo aquele que se declarar por Mim diante dos homens, também Me declararei por ele diante do Meu Pai que está nos Céus. Mas aquele que me negar diante dos homens, negá-lo-ei também diante do Meu Pai que está nos Céus. Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada.
(Evangelho segundo S. Mateus, 10: 32-4)

Tomando a palavra, Pedro respondeu-Lhe: «Ainda que todos se escandalizem de Ti, eu nunca me escandalizarei.» Jesus retorquiu-lhe: «Em verdade te digo que esta mesma noite, antes de o galo cantar, Me negarás três vezes.» Pedro disse-Lhe: «Mesmo que tenha de morrer Contigo, não Te negarei.»
(Evangelho segundo S. Mateus, 26: 33-5)

E ela olhou-o de novo e viu que não era o Messias.
O Messias não se erguera. O entusiasmo e a pureza
escaldante não eram mais, nem a juventude
arrebatada. A juventude morrera nele. Este homem
era de meia-idade, desiludido, com uma certa
indiferença terrível e uma resolução que o amor
nunca venceria. (…) O homem erguido era a morte
do seu sonho.
(D. H. Lawrence, «O homem que morreu», 1920: 138)

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Então um dos doze, chamado Judas Iscariotes, foi ter com
os príncipes dos sacerdotes e disse-lhes: «Quanto me
dareis se eu vo-Lo entregar?»
(Evangelho segundo S. Mateus, 26: 14-5)

Vejam os apóstolos, por exemplo. Deixam-me bestialmente chateado, se querem saber a verdade. Portaram-se bastante bem depois de Jesus morrer e assim, mas enquanto Ele estava vivo foram tão úteis para ele como um buraco na cabeça. A única coisa que faziam era estar sempre a deixá-Lo sozinho. Gosto mais de quase toda a gente na Bíblia do que dos discípulos. (…) O amigo Childs era quaker e tudo, e estava sempre a ler a Bíblia. (…) Dizia sempre que se eu não gostava dos discípulos também não gostava de Jesus e assim. Dizia ele que como Jesus escolheu os discípulos, nós tínhamos de gostar deles. Eu disse-lhe que bem sabia que Ele os tinha escolhido, mas que os tinha escolhido ao calhas.
(J. D. Salinger, À Espera no Centeio, 1945: 112)

Nenhum homem inferior pode ter um mestre, porque o mestre não tem nele nada de que o ser.
(Fernando Pessoa / Álvaro de Campos, Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro, 1997: 72)

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No meu trabalho para o Professor Story (…), ele fez um simples comentário de uma linha, que me atingiu em cheio. Escreveu: «Talvez Marcos tenha simplesmente cometido um erro.» Comecei a pensar no assunto, (…) Finalmente, concluí: «Hum… provavelmente, Marcos cometeu um erro.»
Feita esta admissão, as comportas abriram-se. Pois se podia haver um pequeno erro negligenciável no capítulo 2 do Evangelho de Marcos, também poderiam existir erros em outras passagens.
(Bart D. Ehrman, Os Monges que Traíram Jesus, 2005: 21)

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Alguns Mestres destruíram os seus discípulos (…)
Em contrapartida, alguns discípulos, pupilos,
aprendizes subverteram, traíram e
arruinaram os seus Mestres.
(George Steiner, As Lições dos Mestres, 2003: 11)

Traem-se os poderes fixos que nos querem reprimir, os poderes estabelecidos da terra.
(Gilles Deleuze e Claire Parnet, Diálogos, 1977: 52)

pouso dinamite no alicerce.
(Luis Maffei, Signos de Camões, 2013: 29)

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Amanhã ou depois de amanhã vou perguntar-lhe com que é que
sonhou hoje, domingo, exactamente à uma e um quarto da
madrugada. Eu sonhei consigo morto
(Marina Tsvietaieva, Noites Florentinas, 1933: 62)

Agarrou na vela e pô-la ao meu lado no chão, ajoelhou-se ao pé da vela e abraçou-me os joelhos. – És uma traidora? – perguntou. – Vieste para a minha casa, a casa dele, a casa da minha filha, para nos trair?
(Djuna Barnes, Uma Noite entre os Cavalos, 1929: 31)

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Eu não sou senhor professor doutor
minha não-senhora minha não-menina
e se estou de pé é ilusão de óptica
eu estou sentado todos nós sentados
isto é não rígidos não equilibrados
(Luiza Neto Jorge, Os Sítios Sitiados, 1973: 50)

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Também te feri, certamente, mais de uma vez com palavras, mas sabia
sempre que te ofendia, isso fazia-me mal, não me podia dominar bastante
para reter a palavra, estava ainda em acção de a pronunciar e já
lamentava o facto. Enquanto tu atacavas sem te preocupar com nada,
ninguém te inspirava piedade, nem no próprio momento, nem depois,
estava-se absolutamente sem defesa perante ti.
(Franz Kafka, Carta ao Pai, 1919: 15)

Levanta-se a questão, falando ao mesmo tempo com arrogância e sobriedade: Porque precisava Kafka de seu pai?
(Max Brod, Franz Kafka, 1937: 18)

Filho, meu filho, desiste de lutar contra
mim. Há mais de mim em você que de
você mesmo.
(Dalton Trevisan, Cemitério de Elefantes, 1964: 44)

Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser
humano!
(Fernando Pessoa / Álvaro de Campos, poema sem título,
iniciado pelo verso «Mestre, meu mestre querido!», 1928:
246-7)

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HANS VAN DER LANGENSTRATEN
Se nós abríssemos as portas de Münster ao inimigo, seria uma traição.
HEINRICH GRESBECK
Que é uma traição aos olhos de Deus?
HANS VAN DER LANGENSTRATEN
Disseste que talvez Deus não seja senão o nome que tem.
Seja Ele um nome, ou mais do que um nome, a traição, que é coisa de homens, não significaria nada aos Seus olhos.
HEINRICH GRESBECK
Significaria, sim, se, de cada vez que traíssemos, soubéssemos de que lado Ele está.
(José Saramago, In Nomine Dei, 1993: 139)

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Ele era sacana, por nascimento e profissão, embora tivesse escrúpulos, um sacana com princípios.
(Pepetela, O Quase Fim do Mundo, 2008: 196-7)

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HEINRICH GRESBECK
(…) Não pode ser chamado traidor quem a Deus favoreceu.
(…)
Que faremos, então?
HANS VAN DER LANGENSTRATEN
Trairemos Münster para não trair Deus.
(José Saramago, In Nomine Dei, 1993: 139-140)

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Riefenstahl, Resnais…: quem é fiel? Quem trai?
(Joana Matos Frias, «Os sais e as cinzas: dialéctica da anestesia na obra de José Miguel Silva», 2013: 61)

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HEINRICH GRESBECK
E se Deus não é mais do que o nome que tem?
HANS VAN DER LANGENSTRATEN
Um dia se saberá, mas nós não o saberemos.
HEINRICH GRESBECK
Todo o acto humano é cometido nas trevas, todo o acto humano é criador de trevas.
Deus não é luz suficiente.
HANS VAN DER LANGENSTRATEN
Não há, pois, outro Diabo senão o homem, e a terra é o lugar único do inferno.
HEINRICH GRESBECK
Traímos?
HANS VAN DER LANGENSTRATEN
Traímos.
(José Saramago, In Nomine Dei, 1993: 140)

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Freud não terá sentido surpresa. O parricídio estava presente na sua
leitura central de Édipo. A civilização emergira do assassínio do pai.
Identificando-se com Moisés, e entendendo o destino da psicanálise
como uma longa travessia do deserto, Freud terá intuído que Jung seria o
seu Aarão e Adler um «Judas».
(George Steiner, As Lições dos Mestres, 2003: 103)

«É verdade, admitiu o corcunda; e aos alunos é permitido trair os segredos da escola.
Mas por que é que Zaratustra fala de uma maneira aos seus discípulos, e doutra a si próprio?»
(Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, II, 1883: 158)

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ADORNO, Theodor W.
1955 ed. ut.: «Caracterização de Walter Benjamin», in Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d’Água, 1992: 7-26.

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BARNES, Djuna
1929 A Night among the Horses; ed. ut.: Uma Noite entre os Cavalos, Lisboa, Hiena, 1994.

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BROD, Max
1937 Franz Kafka – Eine Biographie; ed. ut.: Franz Kafka, Lisboa, Ulisseia, s/d.

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DELEUZE, Gilles, e PARNET, Claire
1977 Dialogues; ed. ut.: s/l, Flammarion, 1996.

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EHRMAN, Bart D.
2005 Misquoting Jesus. The story behind who changed the Bible and why; ed. ut.: Os Monges que Traíram Jesus. A história dos copistas que adulteraram a Bíblia, Lisboa, Lua de Papel, 2006.

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Evangelho segundo S. Mateus
s/d in Bíblia Sagrada, 15ª ed., Lisboa, Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), 1991: 1288-1332.

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FRIAS, Joana Matos
2013 «Os sais e as cinzas: dialéctica da anestesia na obra de José Miguel Silva», Elyra, 1, http://elyra.org/index.php/elyra/article/view/11/10

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JORGE, Luiza Neto
1973 Os Sítios Sitiados; ed. ut.: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim.

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KAFKA, Franz
1919 ed. ut.: Carta ao Pai, Lisboa, Guimarães, 2000.

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LAWRENCE, D. H.
1920 ed. ut.: «O homem que morreu», in Amor no Feno e outros contos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988: 125-168.

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MAFFEI, Luis
2013 Signos de Camões, Lajes do Pico, Companhia das Ilhas.

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NIETZSCHE, Friedrich
1883 Also Sprach Zarathustra, II; ed. ut.: Assim Falava Zaratustra, 11ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1997: 89-165.

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PEPETELA
2008 O Quase Fim do Mundo, Lisboa, Publicações Dom Quixote.

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PESSOA, Fernando / CAMPOS, Álvaro de
1997 Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro, Lisboa, Estampa.

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SALINGER, J. D.
1945 The Catcher in the Rye; ed. ut.: À Espera no Centeio, Lisboa, Difel, 2005.

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SARAMAGO, José
1993 In Nomine Dei, Lisboa, Caminho.

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STEINER, George
2003 Lessons of the Masters; ed. ut.: As Lições dos Mestres, Lisboa, Gradiva, 2005.

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TIEDEMANN, Rolf
1989 «Introduction» a Walter Benjamin, Paris, Capitale du XXe Siècle. Le Livre des Passages, Paris, Cerf, 1989: 9-32.

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TREVISAN, Dalton
1964 Cemitério de Elefantes; ed. ut.: Lisboa, Relógio d’Água, 1984.

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TSVIETAIEVA, Marina
1933 Neuf Lettres avec un Dizième Retenue et une Onzième ReçueNuits Florentines») ; ed. ut. : «Noites Florentinas», Lisboa, Hiena, 1994.

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A escrita deste texto foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto «PEst-OE/ELT/UUI0500/2011».

O número de ouro: de Camões a Almada Negreiros

http://vimeo.com/67602495

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“A proporção áurea ou razão de ouro aparece regularmente na Arte desde pelo menos o Séc. V a.C., quando o arquitecto Phideas a utilizou na concepção do Parténon. Desde então, este número tem surgido pela mão de artistas de diversas épocas e formas de arte, seja na pintura de Giotto, na música de Bartok, na poesia de Camões, na arquitectura do Iluminismo, nas construções de Le Corbusier ou nas obras de Almada Negreiros.
Data de 1509 a obra De Divina Proportioni de Luca Paciolli. Pedro Nunes refere-a nos seus livros, e pode tê-la feito chegar a Camões, que, alegadamente, terá utilizado a razão de ouro na sua obra. Finalmente, e celebrando os 120 anos do nascimento de Almada Negreiros, iremos conhecer a sua obsessão com as proporções – entre as quais o número de ouro – culminando na última obra da sua vida, Ode à Geometria.”

Nota biográfica

Carlota Simões é Professora Auxiliar do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, é membro do Centro de Física Computacional da Universidade de Coimbra e actualmente é Vice-Directora do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. 
Um dos seus principais interesses é a divulgação da Matemática, que concretiza através de artigos, palestras ou actividades interdisciplinares.

Cego de tanto ver? O olhar do espectador de cinema, hoje.

http://vimeo.com/65497004

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Nesta sessão pretende-se abordar:
“O gesto fundador do cinema e a construção do espectador enquanto sujeito do olhar.
O desaparecimento do grande ecrã e da sala de cinema enquanto espaço único de receção do filme e a multiplicação crescente de ecrãs omnipresentes de todas as dimensões.
As mutações que esta evolução provocou no filme e na sua relação com o espectador.
A cinefilia ainda existe?
Que acontece ao olhar do espectador?
Ver tanto pode afetar esse olhar?”

Nota biográfica

Abílio Hernandez Cardoso é Prof. aposentado da Universidade de Coimbra onde lecionou Literatura Inglesa e História e Estética do Cinema, disciplina criada por proposta sua em 1992.Prof. Titular da “Cátedra Manoel de Oliveira” da Universidade Portucalense.Licenciado em Filologia Germânica pela FLUC com a dissertação Faulkner e o negro.Doutorado em Literatura Inglesa pela UC com a dissertação sobre James Joyce, intitulada De Ítaca a Dublin: Ulysses ou a odisseia da palavra.
Investigador do Centro de Literatura Portuguesa (UC), do Projeto Rutura Silenciosa: Intersecções entre a arquitetura e o cinema (Fac de Arquitetura da Univ do Porto) e colaborador do Centro de Estudos em Letras (UTAD).Alguns cargos e funções que desempenhou:
– Diretor do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra (até 2011).
– Presidente de Coimbra, Capital Nacional da Cultura (2003)
– Pró-Reitor da Cultura da Universidade de Coimbra (1994-98).
– Diretor do Teatro Académico de Gil Vicente (1996-2001).
Actualmente é Mandatário da candidatura do movimento Cidadãos por Coimbra às próximas eleições autárquicas em Coimbra.
Publicações mais recentes:
2012: “De Hiroshima a Marienbad: diálogo com o cinema que nos olha” in Atas do Colóquio Internacional DIÁLOGOS EM MARIENBAD: Relações entre Literatura e Cinema (Universidade dos Açores). No prelo.
2012: “Cinema e poesia ou o coração da memória”, in Revista de História das Ideias, vol. 32.
2011: “De La Ciotat a Auschwitz, Hiroshima e Sarajevo: como se constrói uma memória, como se esquece uma cidade…”, in Cine y ciudad, ed. Francisco Salvador Ventura (Ed.). Santa Cruz de Tenerife: Intramar Ediciones, 2011.

De que forma é que as ideias podem ser perigosas hoje?

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http://vimeo.com/64386071

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Nota biográfica

Boaventura de Sousa Santos é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
Dirige actualmente o projecto de investigação ALICE – Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do mundo, um projeto financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC), um dos mais prestigiados e competitivos financiamentos internacionais para a investigação científica de excelência em espaço europeu.
É co-coordenador científico dos Programas de Doutoramento:
- Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI
- Democracia no Século XXI
- Pós-Colonialismos e Cidadania Global.
Tem trabalhos publicados sobre globalização, sociologia do direito, epistemologia, democracia e direitos humanos. Os seus trabalhos encontram-se traduzidos em espanhol, inglês, italiano, francês e alemão.

Visita ao estúdio de Francis Bacon

Perry Ogden, Photographs of Francis Bacon’s Studio at 7, Reece Mews. 1998

Perry Ogden, Photographs of Francis Bacon’s Studio at 7, Reece Mews. 1998

Visitei o estúdio do falecido Francis Bacon. Acho justificada a minha curiosidade de visitar o estúdio de um morto, desde o momento que se saiba que Francis Bacon nasceu no mesmo ano que eu. Não pelo seu nascimento original, mas pela sua última morada inabitual e último local de trabalho até à morte física confirmada desse animal que pintava. Foi o seu último nascimento, a última vez que o pintor da Irlanda em Londres mudou de ovo permanentemente.

Cada quadro teu produz, além do espanto que parte e reparte sem que ninguém fique com a melhor parte, uma legião relativamente desordenada de novos habitantes do mundo: manchas de tinta nas portas do estúdio, que fazem um índice das cores que rodeiam as cores do quadro; as fotografias que justificam as tuas ideias como pintor, que os críticos astutos colocam entre os materiais da tua invenção, que tu, cúmplice, rasgas ou amarfanhas para parecer que estavam lá antes da pintura, porque queres deixar uma pista enganadora sobre a viagem das coisas entre a causa e o efeito, como se os objectos criados pela tua pintura estivessem lá antes, em vez de nascerem como superabundância que escorre do que tu pintas.

As pessoas vêem que tu não pintavas só com pincéis, que deitavas mão a rolos, claro, mas isso, se te aproximava de um pintor de paredes, não chegava ainda a merecer menção; pintavas também com meias velhas, com pedaços de guardanapos (quem sabe de que banquetes) e com veludos; com pedaços de carne talvez não, a análise dos pigmentos nunca deu essa pista, a carne animal estava só na representação. Esse, mais um, ingrediente do caos, não ajuda a perceber a confusão que se instalou nos intérpretes acerca da ordem em que as coisas vêm ao mundo. As sinistras fotografias de cadáveres que restaram da violência naquela prisão americana que bem sabes, também essas fotografias criadas pelas tuas pinturas, que alguém disfarçou de material preparatório, perturbam-me, porque me perturba sempre a tentativa de forçar a seta do tempo a andar na direcção errada. Neste caso, ao contrário das fotos dos teus amantes, que acho magnífico que tenhas criado pintando, é quase criminoso que tenhas transformado essas ideias de cadáveres violentados em papel fotográfico, em imagens que até têm outro autor, conhecido e de nomeada, para aprimorar o distúrbio ontológico, e esse quase crime está num ponto simples que a tua voragem criadora não acautelou: é impossível saber se essas imagens, além de como fotos escorrerem da tua pintura, não prosseguiram o delírio do Ser ao ponto de terem criado aqueles cadáveres, aquela prisão, aquela chacina, até aquele Truman Capote que testemunhou tudo, dando ao teu acto de criação do mundo uma testemunha mundana.

Desorienta-me que se conte a história do mundo ao contrário da seta do tempo.

Francis Bacon tinha no estúdio uma fotografia de um homem que escreve enquanto a parte inferior do seu corpo se encontra entre as mandíbulas de um crocodilo morto.

Bruno Latour, esse teórico da sociedade como associação sempre em curso, como redes de forças, diria que não há crocodilos mortos, que um morto (crocodilo ou não) não empurra nada nem ninguém para fazer seja o que for e que qualquer coisa que não faz força alguma para que alguma outra coisa tenha uma acção segundo o seu impulso, essa coisa praticamente não existe. Vemos pouco as coisas paradas, fomos evolutivamente desenhados para dar atenção ao que se move, porque pode ser uma presa ou um predador, já as coisas paradas somem-se da vista, como se entrassem no nevoeiro da imaginação poética que nada faz ao mundo. Se não há crocodilos mortos, como pode estar um homem a escrever com a parte inferior do seu corpo entre as mandíbulas de um crocodilo morto? Isso seria uma coisa existente, praticamente existente, um homem que escreve, mesmo que faça pouco ao mundo, entre as mandíbulas de uma coisa inexistente, um crocodilo morto.

É certo que nos sentimos inúmeras vezes entre as mandíbulas de coisas inexistentes.

Contudo, a monarquia britânica não cessa de existir quando todos os membros da família real dormem e nenhuma cerimónia própria da instituição está em curso, porque as prerrogativas e os poderes permanecem, mesmo que não estejam a ser exercidos pelas quatro da manhã de uma qualquer terça-feira. Que a rainha durma, que durma o príncipe herdeiro na cama da sua mulher ou da sua amante, que durmam, por hipótese, todos os vivos na linha da sucessão, ainda assim a monarquia existe de forma contínua. Afinal, que diferença há entre uma casa real que dorme e um crocodilo morto, se ambos podem abrigar a parte de baixo do corpo de um homem que escreve. E, contudo, Latour insistiria, acho eu, que não há crocodilos mortos.

Com a tua pintura criaste um mundo que se passeia entre nós para além do alcance da tua mão e agora não te preocupas, decerto, em saber como se trata do animal e das suas manhas: nem imaginas o preço de lhe dar de comer, já para não falar das dificuldades de explicar a coisa quando o nosso filho pergunta porque é que o animal pendurado no talho parece um cardeal e está ali na parede à nossa vista.

Das tuas pinturas saíram como filhas (esta é uma história em episódios inumeráveis) as fotografias de Muybridge, que ficaram conhecidas como uma enciclopédia de imagens do corpo humano em actividades diversas; da superfície enganadoramente quieta dos teus quadros nasceram as infinitas sucessões de imagens, quase fílmicas, de toda a espécie de torsões e convulsões que os corpos humanos fazem, nascendo a carne em movimento de ideias que não encontram repouso e que tu pintavas em cima da ginástica da alma humana enquanto alma animal enquanto alma capaz do pior das almas dos deuses.

A tua biblioteca de páginas arrancadas a livros e revistas, centenas de folhas deslocadas da sua casa, metade de cada folha inutilizada, porque só uma página de cada folha te interessava para essa biblioteca nómada dentro do caos do estúdio, porque só uma página de cada folha podia servir-te de espelho pregada nas paredes da cozinha com banheira (não sei se alguma vez tentante separar as duas páginas de uma folha), a tua biblioteca de páginas arrancadas como pedras atiradas à água que ficam a levitar dois dedos de tensão acima da superfície, é um monstro colorido criado pelos teus quadros para nos enganar com o erro classificatório habitual: materiais de trabalho. Como se existissem antes do que as criou. É como perguntar onde dormem as libelinhas, quando toda a gente sabe que as libelinhas não dormem, que quando dormem parecem aviões comerciais num aeroporto, não libelinhas.

Não sei se alguma vez mediste o alcance da tua responsabilidade. Criar mundos com tintas pode ser repugnantemente irresponsável. A forma que os críticos encontram para te ilibar, um pouco infantilmente, é falar das doenças de pele documentadas em livros médicos que tu possuíste como se os livros médicos tivessem aparecido e sido lidos e observados por ti antes de pintares os teus monstros. Falam, como crianças que não reconhecem a gravidade dos seus jogos, como quem não se apercebe da diferença entre um livro médico, por um lado, e, por outro lado, um livro de desporto ou de política. É possível afastar-te das tuas responsabilidades com teorias correntes sobre o mundo de todos os dias? Sabemos que não é assim. Pintaste esses livros, com os teus quadros, com as doenças da pele que eles documentam: criaste todas as doenças da pele que há no mundo.

O teu contributo para a fábrica da filosofia, ou para a disciplina que alguns tanto acarinham, a ontologia, o estudo do que há, são os teus quadros inacabados. Já sabemos que andaste a criar mundos que nunca mais verdadeiramente voltaram ao redil. O que não sabemos é se estes pedaços de mundo só resultavam das tuas pinturas terminadas ou se, diversamente, começavam logo a destilar dos quadros ainda em construção. Olhando para as tuas obras inacabadas, que não distingo das abandonadas ou esquecidas, não consigo determinar-me sobre esse ponto: suponho que as colecções das obras interrompidas sirvam à ciência para estudar o estatuto ontológico da possibilidade em construção. Há quem acredite que a construção, além de tipicamente encerrar o enigma da pouca diferença (essa terrível semente de mostarda) entre o possível e o impossível, encerra ainda a principal ameaça do tempo: quando paramos deixamos de correr, em qualquer sentido que seja, do passado para o futuro; quando paramos cabe ao tempo escolher o sentido da jornada por vir. Ao parar, nunca sabemos se o próximo arranque será em frente ou às arrecuas.

Naturalmente, deixaste por morte um auto-retrato inacabado. Teria de ser forçosamente inacabado: um auto-retrato completo produziria um outro pintor como tu, Tu, e a simples ausência de um último auto-retrato inacabado deixaria os anteriores auto-retratos activos, a produzir-te pelos séculos dos séculos de novo, Tu entre nós, um regresso herético. Só um retrato incompleto, interrompido, poderia interromper a tua eterna produção de ti pela força dos teus pincéis e outros meios de fazer mundos através das telas.

Bebemos aos cardeais pendurados no açougue. Eles deixam em nós a mesma marca transviada da visão que te marcou cedo: a cara maculada de sangue da enfermeira do couraçado Potemkine, que nunca teve sangue nenhum em vida, mas teve-o todo no Couraçado Potemkine. E isso é que conta, porque assim se fazem os mundos. Pelas mesmas razões que diria que um crocodilo morto não existe, Latour, decerto, falaria de Francis Bacon como um pintor vivo. Mas isso há que perguntá-lo a Francis Bacon.

Somos todos mestiços: Considerações filosóficas sobre o diálogo intercultural

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http://vimeo.com/62788529

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Nota biográfica

João Maria André nasceu em 1954 em Monte Real, Leiria. Licenciou-se em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1979), tendo-se doutorado pela mesma Faculdade com uma dissertação intitulada Sentido, simbolismo e interpretação no discurso filosófico de Nicolau de Cusa. É professor catedrático, ensinando nas áreas de Filosofia e do Teatro, e Diretor do Departamento de História, Arqueologia e Artes. É autor, entre outros livros, de Renascimento e Modernidade: do poder da magia à magia do poder (1987), Sentido, simbolismo e interpretação no discurso filosófico de Nicolau de Cusa (1997), Pensamento e afectividade (1999), Diálogo intercultural, utopia e mestiçagens em tempos de globalização (2005) e Multiculturalidade, identidades e mestiçagem: o diálogo intercultural nas ideias, na política, nas artes e na religião (2012). Além da docência e da investigação, tem desenvolvido também a sua actividade como animador cultural, nomeadamente através da tradução, dramaturgia e encenação na Cooperativa Bonifrates de Coimbra e no Teatro Académico de Gil Vicente, de que foi Director de 2001 a 2005.