Monthly Archives: Fevereiro 2013

Caro amigo,

Carlos Antunes

Carlos Antunes

regresso agora de um novo passeio ao nosso Jardim da Sereia e é comovido que me dirijo a ti, como cidadão, arquiteto, tão impressionado pela devastação. Mas ocorreu-me que talvez pudéssemos encontrar uma resposta criativa e positiva para a desgraça.

Não tenho memória, e creio que ninguém terá, de uma devastação semelhante no Jardim e julgo que este dia não deve ser esquecido. Esta tragédia sublinha a fragilidade da natureza e dos elementos naturais, e sublinha também por isso a fragilidade da nossa própria existência. Foi essa lição que aprendi, eu que procuro sempre obsessivamente ver o lado positivo de tudo.

Julgamos sempre que árvores seculares nos sobreviverão e que o seu tempo é infinitamente superior ao nosso. Este acidente demonstra o contrário. Desde a primeira hora te falei da minha vontade de reutilizar a madeira das árvores tombadas, e na altura considerei a possibilidade de a utilizar num pavilhão de exposições sobre o ambiente que me encontro a desenhar a convite do município de Paredes. Agora reconsidero essa possibilidade. Do resultado deste passeio, ocorreu-me que talvez fosse possível fazer um novo uso dessa madeira no Jardim da Sereia. Trata-se no essencial de madeira de cedro, uma madeira de grande qualidade, e lembrei-me, observando comovido um grande cedro derrubado, que era possível desenhar sob ele – suspendendo-o com uma estrutura de madeira que reutilizava a madeira derrubada – um pavilhão de leitura para as crianças que frequentam o parque, sob o domínio da ludoteca. Um pavilhão que seria também um memorial que nos lembrasse para sempre este dia, em que confrontados com a tragédia erguemos a cabeça. Um memorial como uma resposta criativa do tempo contra o tempo, como escrevemos com o nosso amigo Luís Quintais, na memória descritiva da nossa proposta para o memorial do World Trade Center em Nova Iorque.

Se considerarmos esta possibilidade, deveremos falar o quanto antes, antecipando a fúria da motosserra que tudo limpa, até a memória.

Um abraço amigo do

Carlos Antunes

(sobre a devastação no Jardim da Sereia, em Coimbra, causada pela tempestade do dia 19 de Janeiro de 2013)

Do Atelier do Corvo

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http://vimeo.com/61227147

Ouça o podcast ou descarregue-o aqui.

«(…) os trabalhos do Atelier do Corvo materializam poesia, especialmente na proposta do concurso para uma escola primária na zona do Sahel (2002). Aqui, o dito Momento Português relaciona-se com o abrigo sensível, de fácil construção e clara compreensão para o utilizador final. As propostas mais interessantes do Atelier do Corvo são aquelas em que, não seguindo os cânones correntes, é percorrida uma fronteira preclitante entre a abstracção significativa e o contexto imediato, formalmente perceptível. (…)»

Wilfried Wang, “O Momento Português”, no catálogo da exposição Arquitectura: Portugal fora de Portugal, organizada pela Ordem dos Arquitectos, por solicitação da Presidência da República, para acompanhar Sua Excelência, o Presidente da República Aníbal Cavaco Silva, na visita a Berlim.

Nota Biográfica:

Carlos Antunes nasceu em Coimbra, Portugal, a 9 de Junho de 1969. Estudou Arquitectura na FAUP e entre 1995 e 1996 formalizou o Atelier do Corvo com a arquitecta Désirée Pedro. Desde 2008 é professor auxiliar convidado do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, onde lecciona as disciplinas de Desenho I e Projecto I. Costuma dizer que dar aulas alterou a sua relação com a disciplina. Só vale verdadeiramente a pena ensinar quando estamos mais dispostos a aprender do que a leccionar. Em 2010 assume a Direcção do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, do qual é sócio desde 1987. Vive em Miranda do Corvo com Désirée e os seus dois filhos, Tomé e José.

Breve nota sobre ler Herberto Helder

Julião Sarmento

Julião Sarmento

Eu viajava no metro, como todos os dias, em direcção ao centro do Porto. Como todos os dias, sentado ou de pé, eu lia. Nesse fim de tarde, no outono: A Faca Não Corta o Fogo, de Herberto Helder. Lia os poemas, enquanto passavam as estações, enquanto tudo ia caindo para trás, para a noite. Até que uma asfixia, literal, literalíssima, me tomou. Uma escassez – ou seria excesso – de oxigénio, contracção invisível do diafragma, fechamento dos pulmões, inexplicável, o pânico. Precisei de parar de ler, fechar o livro, sair à pressa do metro, regressar ao frio da cidade em volta, deixar passar muito tempo antes de retomar A Faca Não Corta o Fogo.

Tudo isto seria um acidente, irrisório, não valeria a pena escrever sobre coisa tão pouca – se não houvesse outros testemunhos, concordantes. Porque, nos dias seguintes, ainda assustado com a rebeldia do meu corpo, estive atento. Eu sabia que outros, outras, liam também A Faca Não Corta o Fogo. Perguntei. E uma leitora disse-me: lia, não conseguia parar de chorar. E um leitor: que estava a ler Herberto Helder, um amigo ligou-lhe; o leitor não conseguia falar, responder ao telefone, e o amigo perguntou: sentes-te bem? o que se passa com a tua voz? aconteceu alguma coisa? E eu compreendi que estávamos – todos nós, leitores isolados, cada um de nós sozinho – possuídos por A Faca Não Corta o Fogo.

Quando se transforma uma sequência de acasos, de ocorrências singulares, numa lei da leitura? O que significa isto: leitores, sozinhos, perante o mesmo livro, vivendo a mesma comoção, o corpo na mesma revolta?

Decerto não sei explicar. Toda a gramatologia não chega para compreender o que acontecia àqueles corpos, os nossos. Eu lia, por exemplo,

sou eu que te abro pela boca,
boca com boca,
metido em ti o sôpro até raiar-te a cara,
até que o meu soluço obscuro te cruze toda

ou:

o fundo do cabelo quando o agarras todo para quebrá-la,
tu que perdeste o fôlego,
e sim respiras agora do sôfrego que foste nela,
perdes a fala quotidiana,
ganhas em tudo mas não sabes quanto ganhas

ou ainda:

basta que te dispas até te doeres todo,
retoma-te no tocado, no aceso,
e fica cego e,
por memória do tacto, desfaz os nós,
muitos, muito
atados uns nos outros,
e que inteiramente te alcance o ar e,
depois de te haver abraçado de alto a baixo, apareça já
inextricável, ar
falado, a fino ouvido: cacofónico,
mas de um modo exacto, acho,
música inquieta, inconjunta, impura,
isso: essa música

eu lia, leio estes ou outros versos de A Faca Não Corta o Fogo, ou de qualquer outro livro de Herberto Helder, – e também o meu corpo, o corpo do leitor, da leitora, se abre pela boca, e se lhe raia a cara, perde o fôlego e respira de sôfrego, perde a fala quotidiana, dói todo, fica cego, desfaz os nós, alcançado pelo ar, abraçado, sob a música inquieta, inconjunta, pura. Ao corpo do leitor, da leitora, acontece o mesmo que aos corpos no poema – na mais profunda e inesperada mimesis do poema pelo corpo.

O cravista holandês Bob van Asperen disse um dia, numa entrevista concedida à revista Goldberg:

Uma execução musical experimenta-se. Nas boas interpretações, o ouvinte tem tendência para participar, e esta tendência ganha uma realidade física. Constatou-se cientificamente que, quando se ouve um canto, acontece algo na garganta, a garganta quase quer imitar o canto, e efectivamente tenta fazê-lo. É uma reacção física. (…) O ouvinte sente que algo dança dentro de si.

Cito inúmeras vezes estas frases de Bob van Asperen. Elas dizem que não há o sujeito ouvinte e o objecto musical ouvido – mas que o sujeito é imediatamente acontecimento da música, possessão. Quem ouve o canto sofre metamorfoses nos seus órgãos. Quem ouve transfigura-se, o ouvinte é possuído.

E se for também assim com a poesia? Se os poemas de Herberto Helder transfigurarem a carne de quem os lê? Se os versos insinuarem metamorfoses, e os órgãos – não só a garganta, mas também a boca, a cara, os dedos, o corpo todo – imitarem, automáticos, as formas ditas pelos versos? Se, em suma, cada poema der ao corpo do leitor a forma de um corpo novo, se o poema inventar no leitor lágrimas, silêncios, asfixias?

Então talvez o nosso corpo não nos pertença, mas ao poema.

Pedro Eiras

ASPEREN, Bob van
1997 entrevista concedida a Ambrosio Lacosta, in Goldberg, nº 1, Pamplona: 52-61.

HELDER, Herberto
2009 A Faca Não Corta o Fogo, in Ofício Cantante. Poesia completa, Lisboa, Assírio & Alvim: 533-618.

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