Em dois séculos, etnógrafos e antropólogos produziram uma espécie de «Weltliteratur» que descentrou à escala da humanidade os polos — os povos — que atraem a nossa curiosidade. Esse corpus interfere em todos os planos: já não há domínios da vida ou da imaginação em que sejamos só «ocidentais». Onde Foucault via um combate — a literatura, escrita onde o ser da linguagem apareceria, anunciava o fim próximo da antropologia — o que se desenha é afinal uma cumplicidade mediada pela «paixão crítica» da modernidade, como lhe chamou Octavio Paz. O «ethnos», invenção romântica, foi o primeiro nó onde literatura e antropologia mal se distinguem. Mas a ligação nunca cessou de se renovar, de maneira bem pouco disciplinada. A ligação, as ligações: não será isso o que, de maneira mais ou menos secreta, junta (em criptas textuais que nenhuma academia consegue vedar) a pesquisa extravagante cujos emblemas podem ser Ruth Benedict ou Maurice Blanchot, Clarice Lispector ou Evans-Pritchard, María Zambrano ou Leroi-Gourhan?
Gustavo Rubim
–
Gustavo Rubim_ensina literatura na Universidade Nova de Lisboa, em cuja Faculdade de Ciências Sociais e Humanas se doutorou com uma tese sobre Camilo Pessanha e a poética do vestígio. É membro fundador do ELAB – Laboratório de Estudos Literários Avançados (http://elab.fcsh.unl.pt/). O seu mais recente livro de ensaios intitula-se A Canção da Obra (Textiverso, 2008). Em 2011, publicou o estudo “Observadores Observados e a pesquisa avançada em literatura e antropologia” no vol. 15, nº 2, da revista Etnográfica (acessível on-line neste endereço: http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/etn/v15n2/v15n2a07.pdf).
–
Ouça o podcast ou descarregue-o aqui.