Caro amigo,

Carlos Antunes

Carlos Antunes

regresso agora de um novo passeio ao nosso Jardim da Sereia e é comovido que me dirijo a ti, como cidadão, arquiteto, tão impressionado pela devastação. Mas ocorreu-me que talvez pudéssemos encontrar uma resposta criativa e positiva para a desgraça.

Não tenho memória, e creio que ninguém terá, de uma devastação semelhante no Jardim e julgo que este dia não deve ser esquecido. Esta tragédia sublinha a fragilidade da natureza e dos elementos naturais, e sublinha também por isso a fragilidade da nossa própria existência. Foi essa lição que aprendi, eu que procuro sempre obsessivamente ver o lado positivo de tudo.

Julgamos sempre que árvores seculares nos sobreviverão e que o seu tempo é infinitamente superior ao nosso. Este acidente demonstra o contrário. Desde a primeira hora te falei da minha vontade de reutilizar a madeira das árvores tombadas, e na altura considerei a possibilidade de a utilizar num pavilhão de exposições sobre o ambiente que me encontro a desenhar a convite do município de Paredes. Agora reconsidero essa possibilidade. Do resultado deste passeio, ocorreu-me que talvez fosse possível fazer um novo uso dessa madeira no Jardim da Sereia. Trata-se no essencial de madeira de cedro, uma madeira de grande qualidade, e lembrei-me, observando comovido um grande cedro derrubado, que era possível desenhar sob ele – suspendendo-o com uma estrutura de madeira que reutilizava a madeira derrubada – um pavilhão de leitura para as crianças que frequentam o parque, sob o domínio da ludoteca. Um pavilhão que seria também um memorial que nos lembrasse para sempre este dia, em que confrontados com a tragédia erguemos a cabeça. Um memorial como uma resposta criativa do tempo contra o tempo, como escrevemos com o nosso amigo Luís Quintais, na memória descritiva da nossa proposta para o memorial do World Trade Center em Nova Iorque.

Se considerarmos esta possibilidade, deveremos falar o quanto antes, antecipando a fúria da motosserra que tudo limpa, até a memória.

Um abraço amigo do

Carlos Antunes

(sobre a devastação no Jardim da Sereia, em Coimbra, causada pela tempestade do dia 19 de Janeiro de 2013)

Do Atelier do Corvo

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http://vimeo.com/61227147

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«(…) os trabalhos do Atelier do Corvo materializam poesia, especialmente na proposta do concurso para uma escola primária na zona do Sahel (2002). Aqui, o dito Momento Português relaciona-se com o abrigo sensível, de fácil construção e clara compreensão para o utilizador final. As propostas mais interessantes do Atelier do Corvo são aquelas em que, não seguindo os cânones correntes, é percorrida uma fronteira preclitante entre a abstracção significativa e o contexto imediato, formalmente perceptível. (…)»

Wilfried Wang, “O Momento Português”, no catálogo da exposição Arquitectura: Portugal fora de Portugal, organizada pela Ordem dos Arquitectos, por solicitação da Presidência da República, para acompanhar Sua Excelência, o Presidente da República Aníbal Cavaco Silva, na visita a Berlim.

Nota Biográfica:

Carlos Antunes nasceu em Coimbra, Portugal, a 9 de Junho de 1969. Estudou Arquitectura na FAUP e entre 1995 e 1996 formalizou o Atelier do Corvo com a arquitecta Désirée Pedro. Desde 2008 é professor auxiliar convidado do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, onde lecciona as disciplinas de Desenho I e Projecto I. Costuma dizer que dar aulas alterou a sua relação com a disciplina. Só vale verdadeiramente a pena ensinar quando estamos mais dispostos a aprender do que a leccionar. Em 2010 assume a Direcção do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, do qual é sócio desde 1987. Vive em Miranda do Corvo com Désirée e os seus dois filhos, Tomé e José.

Breve nota sobre ler Herberto Helder

Julião Sarmento

Julião Sarmento

Eu viajava no metro, como todos os dias, em direcção ao centro do Porto. Como todos os dias, sentado ou de pé, eu lia. Nesse fim de tarde, no outono: A Faca Não Corta o Fogo, de Herberto Helder. Lia os poemas, enquanto passavam as estações, enquanto tudo ia caindo para trás, para a noite. Até que uma asfixia, literal, literalíssima, me tomou. Uma escassez – ou seria excesso – de oxigénio, contracção invisível do diafragma, fechamento dos pulmões, inexplicável, o pânico. Precisei de parar de ler, fechar o livro, sair à pressa do metro, regressar ao frio da cidade em volta, deixar passar muito tempo antes de retomar A Faca Não Corta o Fogo.

Tudo isto seria um acidente, irrisório, não valeria a pena escrever sobre coisa tão pouca – se não houvesse outros testemunhos, concordantes. Porque, nos dias seguintes, ainda assustado com a rebeldia do meu corpo, estive atento. Eu sabia que outros, outras, liam também A Faca Não Corta o Fogo. Perguntei. E uma leitora disse-me: lia, não conseguia parar de chorar. E um leitor: que estava a ler Herberto Helder, um amigo ligou-lhe; o leitor não conseguia falar, responder ao telefone, e o amigo perguntou: sentes-te bem? o que se passa com a tua voz? aconteceu alguma coisa? E eu compreendi que estávamos – todos nós, leitores isolados, cada um de nós sozinho – possuídos por A Faca Não Corta o Fogo.

Quando se transforma uma sequência de acasos, de ocorrências singulares, numa lei da leitura? O que significa isto: leitores, sozinhos, perante o mesmo livro, vivendo a mesma comoção, o corpo na mesma revolta?

Decerto não sei explicar. Toda a gramatologia não chega para compreender o que acontecia àqueles corpos, os nossos. Eu lia, por exemplo,

sou eu que te abro pela boca,
boca com boca,
metido em ti o sôpro até raiar-te a cara,
até que o meu soluço obscuro te cruze toda

ou:

o fundo do cabelo quando o agarras todo para quebrá-la,
tu que perdeste o fôlego,
e sim respiras agora do sôfrego que foste nela,
perdes a fala quotidiana,
ganhas em tudo mas não sabes quanto ganhas

ou ainda:

basta que te dispas até te doeres todo,
retoma-te no tocado, no aceso,
e fica cego e,
por memória do tacto, desfaz os nós,
muitos, muito
atados uns nos outros,
e que inteiramente te alcance o ar e,
depois de te haver abraçado de alto a baixo, apareça já
inextricável, ar
falado, a fino ouvido: cacofónico,
mas de um modo exacto, acho,
música inquieta, inconjunta, impura,
isso: essa música

eu lia, leio estes ou outros versos de A Faca Não Corta o Fogo, ou de qualquer outro livro de Herberto Helder, – e também o meu corpo, o corpo do leitor, da leitora, se abre pela boca, e se lhe raia a cara, perde o fôlego e respira de sôfrego, perde a fala quotidiana, dói todo, fica cego, desfaz os nós, alcançado pelo ar, abraçado, sob a música inquieta, inconjunta, pura. Ao corpo do leitor, da leitora, acontece o mesmo que aos corpos no poema – na mais profunda e inesperada mimesis do poema pelo corpo.

O cravista holandês Bob van Asperen disse um dia, numa entrevista concedida à revista Goldberg:

Uma execução musical experimenta-se. Nas boas interpretações, o ouvinte tem tendência para participar, e esta tendência ganha uma realidade física. Constatou-se cientificamente que, quando se ouve um canto, acontece algo na garganta, a garganta quase quer imitar o canto, e efectivamente tenta fazê-lo. É uma reacção física. (…) O ouvinte sente que algo dança dentro de si.

Cito inúmeras vezes estas frases de Bob van Asperen. Elas dizem que não há o sujeito ouvinte e o objecto musical ouvido – mas que o sujeito é imediatamente acontecimento da música, possessão. Quem ouve o canto sofre metamorfoses nos seus órgãos. Quem ouve transfigura-se, o ouvinte é possuído.

E se for também assim com a poesia? Se os poemas de Herberto Helder transfigurarem a carne de quem os lê? Se os versos insinuarem metamorfoses, e os órgãos – não só a garganta, mas também a boca, a cara, os dedos, o corpo todo – imitarem, automáticos, as formas ditas pelos versos? Se, em suma, cada poema der ao corpo do leitor a forma de um corpo novo, se o poema inventar no leitor lágrimas, silêncios, asfixias?

Então talvez o nosso corpo não nos pertença, mas ao poema.

Pedro Eiras

ASPEREN, Bob van
1997 entrevista concedida a Ambrosio Lacosta, in Goldberg, nº 1, Pamplona: 52-61.

HELDER, Herberto
2009 A Faca Não Corta o Fogo, in Ofício Cantante. Poesia completa, Lisboa, Assírio & Alvim: 533-618.

Cibernética, sociedade e socialismo

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https://vimeo.com/58646277

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Hermínio Martins foi professor nas Universidades de Leeds, Essex e Oxford, professor visitante nas Universidades de Harvard e Pennsylvania, e investigador-coordenador convidado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Emeritus Fellow em St. Antony’s College (Universidade de Oxford), e investigador honorário do ICS-UL.
Tem livros publicados em Portugal, como por exemplo, Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social; Classe, status e poder e outros ensaios sobre o Portugal contemporâneo (Imprensa de Ciências Sociais); Experimentum humanum –civilização tecnológica e condição humana (Lisboa, Relógio d’ Água, 2011).
Mais recentemente publicou o artigo Empresas, mercados, tecnologia – Uma perspectiva biográfica, na revista portuguesa NADA, no. 16, 2011, pp. 16-39.

Sunset TVs

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https://vimeo.com/58046229

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Sunset TVs
ambiguidade e lucidez na obra de arte

Recuando ao título de uma exposição minha de há alguns anos e de uma canção que fiz com o João Taborda, encontro um possível mote para um percurso pelas minhas exposições mais recentes.
De facto, cada título de uma pintura, exposição, canção, vídeo, pode assumir um sentido particular e absoluto como tradução da experiência estética.
Sendo dada uma obra de arte, esta manifesta a sua condição de catalisadora de sentido, na possibilidade da coexistência de um puro devir de possibilidades, com um sentido unitário, uno, que a própria ideia de composição sempre traduziu ao longo da história da pintura.
O formato de canção como obra de arte, no contexto das artes plásticas, é encontrado como também sendo uma alternativa ao discurso de reflexão sobre arte. Não propriamente como ironia, explorando sobretudo as qualidades da ambiguidade enquanto possível instrumento de lucidez.

António Olaio, artista plástico, nascido em 1963, Sá da Bandeira, Angola. Vive em Coimbra. Professor no Curso de Arquitectura e no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Sociais.
Das suas publicações são de salientar os livros “Ser um indivíduo chez Marcel Duchamp” e, sobre a sua obra, “I think differently, now that I can paint” (editado pelo Centro Cultural Vila Flor, Guimarães), “Brrrrain” (editado pela Culturgest, Lisboa) e “O artista é um readymade retificado” (João Pinharanda, editora Mimesis).
Exposições individuais mais recentes: 2012- Square feet, Sede do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra; 2011– This widow is blocking my Windows, Museu do Chiado, Lisboa ; Shall I vote for Elvis?, Teatro Municipal da Guarda ; 2010- La Prospettiva is sucking reality, Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira ; Na cátedra de S. Pedro, Museu Grão Vasco, Viseu ; 2009 – La prospettiva, Mario Mauroner, Viena ; Brrrrain, Culturgest, Lisboa ; Crying my brains out, Filomena Soares, Lisboa ; 2007 – I think differently now that I can paint, Centro Cultural Vila Flor, Guimarães ; 2006 – Under the stars,  ZDB, Lisboa ; 2005 – Pictures are not movies, Filomena Soares, Lisboa ; 2004 – 40 years in a plane, Kenny Schachter conTEMPorary, Nova Iorque. I’m growing heads in my head, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra ; 2003 – You are what you eat, Centro Cultural Andratx, Palma de Maiorca, 2002 – Telepathic agriculture, Galerie Schuster, Berlin e Frankfurt ; 2001 – Foggy Days in Old Manhattan, Galeria Filomena Soares, Lisboa. Slow Motion, António Olaio, antologia da sua obra em vídeo, ESTGAD, Caldas da Rainha.
Participou em festivais de performance em Portugal, Alemanha, Holanda, França.
Foi um dos fundadores do grupo Repórter Estrábico com o qual editou o álbum Uno dos.
Com o músico João Taborda (António Olaio & João Taborda) editou o CD Loud Cloud pela Lux Records de Coimbra, 1996, o CD Sit on my soul, pela editora Nortesul, Março de 2000 e o CD Blaupunkt Blues pela Lux Records de Coimbra, 2007.

Armadilhas, reloaded

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http://vimeo.com/57516636

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A antropologia da arte de Alfred Gell e para lá dela

Que relação – analógica, metafórica – é esta entre uma obra de arte e uma armadilha? A pergunta envia-nos imediatamente para o trabalho do antropólogo Alfred Gell (1945-1997). O percurso deste antropólogo poderá ser caracterizado por dois elementos que se explicitam de forma particularmente lúcida e feliz no livro póstumo de ensaios que é The art of anthropology_essays and diagrams (1999). Este volume reúne uma parte muito significativa da produção dispersa de Gell, e define de forma muito clara o seu entendimento do que pode ser a antropologia e do que pode ser, em particular, a antropologia da arte.
[…]
Quando eu me confronto com uma obra de arte, eu sei que se trata de um artefacto, eu sei que esse artefacto exige que eu tenha em consideração a intenção de um outro. O reconhecimento da agência não supõe o pleno acesso ao «interior» de uma mente. Eu sei que estou a lidar com esse lugar limítrofe onde transparência e opacidade se revelam indissociáveis, onde a recursividade entre o exterior e o interior se jogam, e onde o poder dos sortilégios é uma função desse jogo. Eu interrogo-me sobre o sentido da obra de arte e exerço uma forma de inferência não demonstrativa. É a «abducção» de que fala Gell. De outra forma ainda, eu passo a fazer parte de um feixe muito complexo de intencionalidades em que reconhecimento de psicologia intencional, simulação de estados mentais de outros, e abdução parecem convergir, revelando-se termos indecidíveis. Algo inclusivé impede ou bloqueia o meu percurso entre tais termos, pese embora o meu reconhecimento da sua operatividade. Um mundo armadilhado é um mundo que bloqueia – e pode bloquer fatalmente – a fluidez do meu percurso. É uma descontinuidade com um sentido paródico e talvez mortal. Um lugar de «suspensão», como Gell escreve admiravelmente:

«Every work of art that works is like this, a trap or a snare that impedes passage, and what is any art gallery but a place of capture, set with what [Pascal] Boyer calls “thought-traps”, which hold their victims for a time, in suspension?» (1999, p. 213).

Uma parte maior do que é arte poderá ter sido capturada por uma armadilha Zande, conclui Alfred Gell, e isto talvez seja apenas o início de um modo diverso de interrogar.

Em primeiro plano, uma armadilha Zande; retirado de Susan Vogel (ed.), Art / Artifact, 1988

Luís Quintais nasceu em 1968. É antropólogo e professor auxiliar junto do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. Como investigador está associado ao Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS) da Universidade de Coimbra. Desenvolveu etnografia sobre guerra e memória traumática junto de ex-combatentes das guerras coloniais portuguesas e investigação de arquivo sobre a emergência e a consolidação da psiquiatria forense portuguesa.
Trabalha actualmente sobre as implicações das ciências cognitivas recentes para a antropologia da arte. Desenvolveu também trabalho ensaístico sobre as relações entre arte e ciência, com especial referência para a designada bioarte, e sobre as relações entre literatura e antropologia.
Na Universidade de Coimbra, lecciona cadeiras sobre história e teoria da antropologia social e cultural, culturas visuais, literatura e antropologia, antropologia médica e antropologia cognitiva. O seu trabalho encontra-se publicado em revistas portuguesas e estrangeiras.
Destaque também para os livros Franz Piechowski ou a analítica do arquivo: ensaio sobre o visível e o invisível na psiquiatria forense portuguesa (Lisboa, Livros Cotovia, 2006), e As guerras coloniais portuguesas e a invenção da história (Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2000).
A sua tese de doutoramento sobre a emergência e a consolidação da psiquiatria forense será publicada dentro em breve pela Imprensa da Universidade de Coimbra com o título de Mestres da verdade invisível no arquivo da psiquiatria forense portuguesa.

A hibridez dos campos agrícolas do ribatejo como desafio para uma outra experiência da paisagem

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http://vimeo.com/57100175

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Reservatório de mutações é o projecto de um ensaio fotográfico sobre o processo de transformação contemporânea dos campos agrícolas no Ribatejo. Trata-se de uma pesquisa ainda em curso, que procura explorar através da fotografia o modo como as novas modelações do espaço agrícola, assim como as mudanças que aí ocorrem ao longo do tempo –dos ciclos agrícolas, dos anos-, abrem a um outro tipo de envolvimento com a paisagem.
A comunicação propõe: i) apresentar o projecto reservatório de mutações; ii) explicar porque é que uma abordagem cultural à paisagem não será operativa para compreender o contexto e a singularidade das novas manifestações daqueles campos agrícolas; iii)  explorar a paisagem mediante a síntese entre uma abordagem comparativa e um envolvimento fenomenológico com o espaço.
Os campos agrícolas do Ribatejo têm estado sujeitos a um processo de transformação radical, causada acima de tudo pela implementação das tecnologias agrícolas contemporâneas de: plasticulture –uso de materiais plásticos na agricultura-; e, sistemas de irrigação por aspersão, fixos ou rotativos -center pivot. Estas novas tecnologias implementam no campo agrícola um grau de artifício incomparável com as práticas agrícolas anteriores. Os campos agrícolas aparecem como um híbrido.
Ora, estas novas características híbridas introduzem um corte com a possibilidade de reconhecimento da paisagem de acordo com as referências culturais estabelecidas: no campo não existem campinos, a presença do gado na lezíria é rara;  as cheias são já esporádicas –devido aos transvases no Tejo-; a vinha, uma das características paradigmáticas da região, tem sido arrancada, com um impacto acrescido entre 2008 e 2011, devido à implementação da Reforma da Organização Comum do Sector Vitivinícola.
Por outro lado, a mudança para a exploração de culturas de regadio, que vêm substituir a vinha, acarreta dois tipos de riscos ambientais: recurso excessivo da única água disponível, proveniente de lençóis freáticos;  contaminação química dos solos e desses mesmos recursos hídricos.
Face ao corte que as novas características híbridas dos campos introduzem do ponto de vista cultural, face aos riscos ambientais associados aquelas novas tecnologias, como explicar a atracção visual que as modelações causadas por aquelas tecnologias suscitam? De que modo é que essa atracção poderá suscitar uma outra poética da paisagem? Eis as problemáticas que a pesquisa fotográfica reservatório de mutações explora.

Emanuel Brás nasceu em 1967, em Coimbra. É fotógrafo. Começou a expor individualmente em 1997. Desde 1999, com a exposição individual Paisagens das lagoas de Vela e Braças: fotografia in situ, o seu trabalho tem vindo progressivamente a focar-se sobre as problemáticas da paisagem no espaço contemporâneo. Das exposições individuais que tem apresentado pode ainda destacar-se: reservatório de mutações, no Museu do Neo-Realismo 2012;  lugares de afecção, nos Encontros da Imagem de 2010: Transmutações da Paisagem (Braga) e no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 2009; Laboratório Chimico. memória do lugar, Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, em 2006; apresentou uma intervenção na fachada do Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, inserida no Festival Luzboa, 2004; Ralo no Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, e da experiência do lugar à paisagem- fotografia in situ, em Marvila, Lisboa, ambas em 2003.

O seu trabalho está representado em várias colecções nacionais: BESart, Colecção Nacional de Fotografia/ Centro Português de fotografia, Fundação PLMJ; Encontros da Imagem, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra.
Lecciona na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. Está a desenvolver um projecto de doutoramento no Research Centre for Land/Water and the Visual Arts, Universidade de Plymouth, Reino Unido. Mestrado em Imagem e Comunicação, no Goldsmiths College, Londres, em 2000. Licenciado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, em 1997.

Aldeias do Interior de Portugal: um estudo sobre desertificação humana e do território

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https://vimeo.com/59003064

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O Meu País Através dos Teus Olhos & O Mural do Povo

A segunda metade do século XX trouxe uma profunda transformação para a organização dos territórios rurais portugueses, principalmente a partir de 1986, ano em que Portugal e a Espanha entraram na União Europeia. As áreas mais afectadas foram Idanha-a-Nova e municípios vizinhos que formam a Raia, na fronteira com a Espanha, uma vez que as suas economias eram sustentadas pela agricultura e pecuária. A Política Agrícola Comum (PAC) introduziu um novo plano de organização para campos/produtos agrícolas e a forma como estes produtos podiam ser comercializados dentro da União Europeia. Na década de oitenta, a agricultura em Portugal era ainda bastante rudimentar, em comparação com outros países europeus. A falta de uma estratégia interna para replanificar este sector, responsável pela maior contribuição para o PIB, levou ao empobrecimento dos campos e do povo do interior, sendo essencialmente os idosos que permanecem e dão continuidade às tradições.

O trabalho de investigação de Cristina Rodrigues surgiu da sua profunda reflexão sobre esta dura realidade. A maioria dos habitantes de Idanha-a-Nova tem uma idade mínima de 65 anos, e são eles que preservam algumas das tradições mais antigas de Portugal. Acreditando ser crucial gravar e documentar as manifestações culturais deste povo de forma a evitar um genocídio cultural, Cristina Rodrigues propôs-se criar o «Museu Rural do Século XXI», uma exposição itinerante que leva a cultura rural a grandes centros urbanos em países que atravessam processos semelhantes de despovoamento e desertificação. Este museu leva a voz destas gerações aos centros urbanos, frenéticos e intensamente populados.

Desde 2009 que tem viajado regularmente para várias aldeias e povoações no interior de Portugal. Nestas visitas, arquitecta faz uso da fotografia como uma das suas principais ferramentas de trabalho para capturar momentos do dia-a-dia e acontecimentos destas pessoas. A sua colecção de fotos intitulada «O Meu País Através dos Teus Olhos» e a instalação de fotos intitulada «O Mural do Povo» foram incluídas no «Museu Rural do Século XXI» e ilustram o desequilíbrio demográfico e o seu impacto na economia e ambiente portugueses.

Segundo Cristina Rodrigues: «da mesma forma que o corpo humano necessita de equilíbrio para se manter saudável, um território necessita de equilíbrio na sua distribuição populacional para prosperar.»

Cristina Rodrigues é arquitecta, curadora e doutoranda no MIRIAD – Manchester Institute for Research and Innovation in Art & Design, e é também responsável por dois projectos de investigação, intitulados «Vilas no Interior de Portugal» e «Design contra Desertificação», os quais fundou enquanto directora da sua firma CR Architects, e os quais desenvolve agora em parceria com MIRIAD, MSA – Manchester School of Architecture, School of Landscape Architecture, os Municípios de Penela e de Idanha-a-Nova e ainda UNESCO Geopark Naturtejo.

Em 2009 fundou CR Architects em Portugal, firma de arquitectura, design e planeamento sustentável com o objectivo de oferecer soluções de planeamento e arquitectura sustentáveis. Usando apenas materiais e mão-de-obra local, a sua firma visa melhorar e contribuir para o desenvolvimento de economias locais.

Os projectos arquitectónicos de Cristina Rodrigues revelam uma influência profunda do património e cultura locais bem como de técnicas de construção tradicionais, pois na opinião da arquitecta são a base sobre a qual se promove o respeito pelo património natural e arquitectónico de um local.

O seu trabalho de investigação tem como ponto fulcral formas novas e sustentáveis de arquitectura que poderão auxiliar no combate à desertificação humana e territorial, num mundo em processo acelerado de globalização. A Desertificação Humana é um problema que tem afectado todo o interior de Portugal, com um impacto negativo nas economias locais e no ambiente, o que é partilhado por vários países do sul da Europa.

A partir de 2011 o seu projecto de investigação «Design contra Desertificação» foi alargado para incluir Idanha-a-Nova e está a ser projectado um modelo de desenvolvimento que inclui a participação de arquitectos, arquitectos paisagistas e profissionais de outras áreas, incluindo Turismo & Gestão, com o objectivo de melhorar as economias locais e a qualidade de vida das zonas rurais.

Cristina Rodrigues é ainda a autora e curadora da exposição itinerante intitulada «Museu Rural do Século XXI», criada para dar resposta aos problemas da desertificação, despovoamento e declínio económico, usando Idanha-a-Nova como caso estudo. A sua visão é a de criar regeneração rural através do envolvimento de artistas, designers e escritores num projecto de colaboração que poderá vir a ter um verdadeiro impacto nas zonas rurais.

GILLES DELEUZE

Mil Planaltos em Vincennes . Paris VIII

REDISCUTINDO A NATUREZA DA PERCEPÇÃO

Eadweard Muybridge

Um ponto de partida fundamental para compreender os trânsitos entre corpo e ambiente é o estudo da percepção: o princípio de toda e qualquer experiência.

Ao contrário do que parecia consensual há alguns anos, a percepção não é apenas uma interpretação de mensagens sensoriais, mas uma simulação interna da ação, assim como, uma antecipação das conseqüências da ação.

Segundo Alain Berthoz, uma das primeiras tentativas para testar esta hipótese foi realizada em 1852 por Hermann Lotze que propunha a organização espacial das sensações visuais como resultante da sua integração com o sentido muscular. William James também descreveu, em 1890, um circuito neuronal que antecipava as consequências sensoriais do movimento. Assim, para os atos perceptivos haveria um ponto de partida determinado por um objeto complexo (a presa por exemplo) mas a representação organizada internamente pelo organismo não se restringiria a esta relação circunstancial. Isso significa que o ato perceptivo poderia prever também o que ainda não havia ocorrido. Assim, depois da simulação inicial haveria uma espécie de adaptação a estimulações futuras passíveis de serem caracterizadas por conduções perceptivas. Era preciso, portanto, suprimir a dissociação entre percepção e ação. Com base nestes estudos, Berthoz propôs o entendimento da percepção como uma ação simulada e o movimento como o nosso sexto sentido. É disso que se trata, provavelmente, a improvisação em dança: de uma aliança entre percepção e ação que aciona um fenômeno perceptivo-imaginativo e que já na ação presente prevê a ação futura. Continuar a ler

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