Armadilhas, reloaded

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A antropologia da arte de Alfred Gell e para lá dela

Que relação – analógica, metafórica – é esta entre uma obra de arte e uma armadilha? A pergunta envia-nos imediatamente para o trabalho do antropólogo Alfred Gell (1945-1997). O percurso deste antropólogo poderá ser caracterizado por dois elementos que se explicitam de forma particularmente lúcida e feliz no livro póstumo de ensaios que é The art of anthropology_essays and diagrams (1999). Este volume reúne uma parte muito significativa da produção dispersa de Gell, e define de forma muito clara o seu entendimento do que pode ser a antropologia e do que pode ser, em particular, a antropologia da arte.
[…]
Quando eu me confronto com uma obra de arte, eu sei que se trata de um artefacto, eu sei que esse artefacto exige que eu tenha em consideração a intenção de um outro. O reconhecimento da agência não supõe o pleno acesso ao «interior» de uma mente. Eu sei que estou a lidar com esse lugar limítrofe onde transparência e opacidade se revelam indissociáveis, onde a recursividade entre o exterior e o interior se jogam, e onde o poder dos sortilégios é uma função desse jogo. Eu interrogo-me sobre o sentido da obra de arte e exerço uma forma de inferência não demonstrativa. É a «abducção» de que fala Gell. De outra forma ainda, eu passo a fazer parte de um feixe muito complexo de intencionalidades em que reconhecimento de psicologia intencional, simulação de estados mentais de outros, e abdução parecem convergir, revelando-se termos indecidíveis. Algo inclusivé impede ou bloqueia o meu percurso entre tais termos, pese embora o meu reconhecimento da sua operatividade. Um mundo armadilhado é um mundo que bloqueia – e pode bloquer fatalmente – a fluidez do meu percurso. É uma descontinuidade com um sentido paródico e talvez mortal. Um lugar de «suspensão», como Gell escreve admiravelmente:

«Every work of art that works is like this, a trap or a snare that impedes passage, and what is any art gallery but a place of capture, set with what [Pascal] Boyer calls “thought-traps”, which hold their victims for a time, in suspension?» (1999, p. 213).

Uma parte maior do que é arte poderá ter sido capturada por uma armadilha Zande, conclui Alfred Gell, e isto talvez seja apenas o início de um modo diverso de interrogar.

Em primeiro plano, uma armadilha Zande; retirado de Susan Vogel (ed.), Art / Artifact, 1988

Luís Quintais nasceu em 1968. É antropólogo e professor auxiliar junto do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. Como investigador está associado ao Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS) da Universidade de Coimbra. Desenvolveu etnografia sobre guerra e memória traumática junto de ex-combatentes das guerras coloniais portuguesas e investigação de arquivo sobre a emergência e a consolidação da psiquiatria forense portuguesa.
Trabalha actualmente sobre as implicações das ciências cognitivas recentes para a antropologia da arte. Desenvolveu também trabalho ensaístico sobre as relações entre arte e ciência, com especial referência para a designada bioarte, e sobre as relações entre literatura e antropologia.
Na Universidade de Coimbra, lecciona cadeiras sobre história e teoria da antropologia social e cultural, culturas visuais, literatura e antropologia, antropologia médica e antropologia cognitiva. O seu trabalho encontra-se publicado em revistas portuguesas e estrangeiras.
Destaque também para os livros Franz Piechowski ou a analítica do arquivo: ensaio sobre o visível e o invisível na psiquiatria forense portuguesa (Lisboa, Livros Cotovia, 2006), e As guerras coloniais portuguesas e a invenção da história (Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2000).
A sua tese de doutoramento sobre a emergência e a consolidação da psiquiatria forense será publicada dentro em breve pela Imprensa da Universidade de Coimbra com o título de Mestres da verdade invisível no arquivo da psiquiatria forense portuguesa.

1 thoughts on “Armadilhas, reloaded

  1. […] [Versões diferentes deste texto foram lidas em voz alta no dia 27 de Maio de 2011 em Materialidades da Literatura e no dia 20 de Novembro de 2012 em Milplanaltos] […]

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